sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Joaquim Barbosa não precisou de cotas


O relator do julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, se transformou em herói nas redes sociais e exemplo de conduta para quem luta pela punição dos políticos envolvidos no esquema de corrupção. Desde que o caso começou a ser discutido no STF, circulam no Facebook mensagens de apoio ao ministro em forma de “memes”, imagens compartilhadas pelos internautas que sintetizam uma ideia de modo rápido e sintético.

As razões que levam as pessoas a distribuir essas imagens variam: em uma delas, Barbosa aparece de costas, com a toga usada pelos ministros do Supremo, e uma legenda que o compara a um super-herói. Outra traz uma montagem da foto do relator com uma faixa presidencial e pede apoio para uma campanha pela candidatura dele ao Palácio do Planalto. E há ainda quem exalte a origem humilde do ministro e o fato de ele ter chegado ao posto atual sem a ajuda de cotas sociais ou raciais.

Alguns opositores da reserva de vagas em universidades aproveitam o exemplo de Joaquim Barbosa (uma exceção) para combater esse método de seleção. Mas ignoram que o próprio ministro, justamente por ter vivenciado as dificuldades de ser pobre e negro no Brasil, declara-se a favor das cotas. Em seu parecer no julgamento do STF sobre a constitucionalidade das cotas, afirmou ele: “É natural, portanto, que as ações afirmativas sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo, é claro, da parte daqueles que historicamente se beneficiam ou se beneficiaram da discriminação de que são vítimas os grupos minoritários.”

Histórico

Os negros passaram por um processo histórico que os colocou à margem da sociedade. Um retrato terrível das crueldades cometidas contra eles é mostrado por Laurentino Gomes no livro 1808. O pesquisador conta que, pelas leis inglesas, se o escravo morresse a bordo do navio negreiro por maus-tratos, fome ou sede, a responsabilidade seria do capitão do navio. Caso caísse no mar, o seguro cobria o “prejuízo”. Por causa disso, em 1781, uma embarcação inglesa que já havia perdido 60 negros por doenças e falta de água e comida decidiu lançar ao mar todos os escravos doentes ou desnutridos. Em três dias, mais de 100 negros foram atirados vivos.

Com a abolição da escravatura, a população negra foi colocada nas ruas sem casa, dinheiro, estudo ou trabalho, com “uma mão na frente e outra atrás”. Tornaram-se iguais no papel, mas desiguais na prática -- assim como ocorre hoje com a população branca e pobre. Embora o ministro Joaquim Barbosa tenha conseguido sair da condição de marginalização imposta aos negros e pobres, ele representa uma clara exceção; foge à regra geral.

Levantamento feito pelo professor de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho revela que o universo acadêmico é profundamente desigual do ponto de vista racial. Ele constatou que, dos 1,5 mil professores que trabalhavam na UnB na época da pesquisa (1999), apenas 15 eram negros (1%). Em nenhuma das outras seis universidades públicas analisadas a porcentagem se mostrou maior. Na USP, por exemplo, o índice não passava de 0,2%.

É por isso que se criou o sistema de cotas. O objetivo dessa política é concretizar o princípio da igualdade previsto na Constituição Federal, já que o nosso país mantém mecanismos dissimulados de exclusão. Para explicar melhor, tomo emprestado o exemplo que li em artigo do advogado Túlio Vianna: podemos comparar os vestibulandos que estudaram em escolas particulares e pagaram cursinhos renomados a pilotos que largam na pole position, com os melhores carros. Enquanto isso, os alunos de baixa renda partem na última fila, em calhambeques.

Quem tem mais mérito? Quem vence a corrida partindo da melhor posição e com o melhor carro ou quem também chega ao fim da competição, mesmo que em último lugar, em condições nada competitivas? Não estou dizendo que o aluno de escola privada conquistou essa vantagem sem esforços, mas sem dúvidas ele teve oportunidades que outros não tiveram.

Para quem se beneficia do sistema da “meritocracia”, é confortável manter a situação como ela está. Mas a igualdade não pode estar só no papel; deve ser colocada em prática a partir de vantagens àqueles que se encontram em situação desvantajosa.

Embora a melhor forma de combater essa situação seja melhorar a educação básica pública, essa é uma medida a longo prazo. De minha parte, considero que o mais adequado seria adotar o sistema de cotas pelo critério socioeconômico – os negros em desvantagem estariam aí incluídos. Só não acho justo que utilizem o exemplo de Joaquim Barbosa para negar a necessidade de uma intervenção no atual modelo.